Com fome e frio, sobre um pedaço de papelão(2), o pobre velho
estende a mão trêmula, desamparada. Mão cansada, que
já não agüenta e aos poucos se abandona vazia. Agora
somente o olhar perdido, decepcionado, sofrido, buscando compreensão.
Olhar tristonho de quem ansioso espera de alguém um gesto de amor.
Assim as horas se passam, enquanto uma esmola espera, suas forças
vão se acabando, seu íntimo se desespera. Num último
esforço possível, apalpa o estilangado(3) seco, pega o cobertor
enfumaçado, e na mais dramática cena, agarrado aos trapos suspira,
enquanto calmo e sereno, o último sopro de vida, lentamente se
expira. Mas não haverá choro, não haverá
velório, nem luto, é apenas mais um mendigo que morre, debaixo do
viaduto.
1 Expressão da solidariedade dos Sem-Terra com outros
destituídos e excluídos, os mendigos Sem-Teto que residem debaixo
do Viaduto do Chá, no centro da cidade de São Paulo. O poema,
escrito em 1988, integra a coletânea (inédita) de autoria de Araci
Cachoeira intitulada Poemas de São Paulo. A autora relata que se
encontrava nessa cidade, numa noite de intenso frio, quando viu o mendigo
expirando seus últimos suspiros. Por ele, nada mais havia a fazer. Movida
de um intenso sentimento de fraternidade, ela interrompe seu trajeto para
escrever para ele esse réquiem.
2 Os mendigos que moram nos espaços públicos debaixo dos
viadutos utilizam caixas de papelão para improvisarem uma casa ou
erguerem o equivalente a uma parede que lhes assegure uma certa privacidade.
3 Regionalismo do Vale do Mucuri para trapo, molambo.
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