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As Imagens e as Vozes da Despossessão: A Luta pela Terra e a Cultura Emergente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)

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Português (change language to English)

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Estudos, depoimentos & referências -> Ensaios 9 recursos (Editado por Else R P Vieira. Tradução © Thomas Burns.)

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Autor:

Plínio Arruda Sampaio

Título:

A Mística

A elite brasileira elegeu o MST como seu inimigo número um. Está certa. Desde o descobrimento do Brasil, o MST é o primeiro movimento popular a desafiá-la abertamente, e com êxito. A elite admite que o povo possa pedir respeitosamente. Mas exigir, reclamar, denunciar, tomar iniciativas por conta própria, nunca. Pois isto é precisamente o que o MST faz: ocupa terras, bloqueia a entrada de prédios públicos, fecha estradas, destrói plantações de transgênicos, sem pedir licença para ninguém.

A indignação torna-se ainda maior pelo fato de que o MST faz política. Seus dirigentes e militantes são afiliados a partidos políticos, candidatam-se a cargos eletivos, apoiam publicamente candidatos a cargos majoritários. Como a elite considera a política seu "território de caça privativo", a reação é violenta. Mas isso ainda não é tudo: o MST organiza e participa de todo e qualquer protesto social. Não há manifestação feminista, ato público pró-indígena, comício contra o pagamento da dívida externa, sem a presença das bandeiras do movimento e sem a palavra inflamada de seus dirigentes. O tom dessas manifestações é sempre o mesmo: a necessidade de completar a construção da Nação brasileira. O MST é um movimento político de caráter nacionalista. Um nacionalismo temperado pelo mais puro internacionalismo, que não pensa em isolar o Brasil, mas alinhá-lo com as nações que lutam para criar uma ordem internacional democrática, em oposição ao mundo governado por sete potências.

Enquanto questiona, desafia, provoca, o MST mantém escolas em todos os Estados do país, para educar filhos de assentados da reforma agrária sob princípios completamente distintos dos que comandam o sistema de educação individualista das escolas da elite. Além disso, organiza, através de seus militantes, a produção das famílias assentadas. E para evitar que sejam exploradas por agro-indústrias, atacadistas e exportadores, organiza também a transformação industrial e a comercialização dos seus produtos. Faz tudo isso em condições extremamente difíceis. Desde a sua fundação, o MST registra dezenas de militantes mortos, centenas de feridos por jagunços ou pela polícia, outros tantos processados criminalmente. A democracia brasileira não tolera um movimento popular não submisso à elite dirigente.

O que move o MST a realizar esse ciclópico trabalho? Tudo se resume em uma palavra: mística.

Mística, "percepção do caráter escondido, não comunicado da realidade", que, como explica Leonardo Boff, "não é o limite da razão, mas o ilimitado da razão".(2)

A mística do MST tem raízes no milenarismo camponês. Em todo o mundo e desde sempre, o camponês é a pessoa que aspira e acredita na possibilidade de um mundo justo e em harmonia com a natureza. Em nome dessa utopia, as massas rurais têm se levantado, através dos tempos, contra o mundo real, sempre injusto, cruel e desequilibrado.

Em seus luminosos trabalhos sobre o milenarismo, Eric Hobsbawm traçou as características desses movimentos. Traços que se repetem desde os taboritas e anabatistas (século XV), os levantes dos camponeses ingleses, andaluzes e sicilianos do século XIX, até as revoluções socialistas modernas do México, Rússia, China, Cuba e Vietnam. Em todas elas nota-se o inconformismo do homem do campo com o advento de um mundo que ele não compreende e que destrói o seu modo de vida – modo de um passado idealizado como Idade de Ouro. Em todas essas manifestações resplandece a fé nas grandes transformações, no homem novo, no mundo regido pela consciência social. É esta mística que questiona uma humanidade domesticada e aviltada pela submissão a uma ordem capitalista desumanizadora, contudo aceita como inelutável.

A mística camponesa provoca antagonismos, mas gera igualmente adesões definitivas e tem efeitos concretos. Crêem alguns que não, que as rebeliões camponesas não conduzem a uma ordem social nova porque o culto do passado não tem o poder de organizar o futuro. Sem entrar no mérito desta discutida tese, o fato é que todas as revoluções sociais do século XX tiveram por base e condição de êxito a esperança camponesa em um mundo melhor.

Pois bem, a base da mística do MST é essa cultura da população rural do país. É na força telúrica dessa população que o movimento alicerça sua fé na possibilidade de mudança e extrai os valores, os sentimentos, as intuições que alimentam a sua mística. A esse alicerce somam-se duas grandes vertentes místicas: a cristã e a socialista-marxista.

O MST nasceu no sul do país, atrás das casas paroquiais, fruto da indignação de um número de camponeses jovens do sul do país, revoltados com a devastação que a modernização capitalista da agricultura estava fazendo nos modos de vida, nas tradições, nos valores de cultura de seus pais. Abençoados pelo seu Bispo, esses jovens militantes cristãos jogaram-se por inteiro na luta contra essa modernização empobrecedora. Não contra a técnica, mas contra o uso dela para exacerbar a dominação do capital sobre o trabalho, ampliar a destruição do meio ambiente, esmagar a cultura do homem do campo. Nessa luta foram despertando para os valores humanistas da cultura marxista e tornaram-se socialistas convictos.

A mescla desses três elementos – o milenarismo camponês; a fé cristã na vida eterna; e a esperança socialista de construir aqui na terra uma sociedade igualitária e democrática – deu como resultado a mística do MST. É fácil comprovar essa afirmação quando se atenta para os seus valores. Ademar Bogo, um dos mais influentes dirigentes do MST, enumerou-os assim: solidariedade, indignação, compromisso, coerência, esperança, auto-confiança, alegria e ternura.(3) Vale a pena vê-los mais de perto.

O valor da solidariedade é visualizado não apenas no nível da família, da vizinhança e do país. Projeta-se nos interesses de classe, dentro e fora do território brasileiro. É solidariedade com todos os injustiçados do mundo. "Embora tenhamos que reavivar os projetos nacionais, pois é onde a nação deve resistir", diz a mística do MST, "não podemos nos fechar aos problemas domésticos, até porque muitos deles só se resolvem com lutas internacionais".

O valor da indignação completa o da solidariedade. Na mística, a indignação contra qualquer injustiça em qualquer parte do mundo deve ser a característica do militante.

O valor compromisso é o respeito aos propósitos feitos coletivamente e se completa com o valor da coerência, que exige a correspondência entre a palavra e a conduta.

Para o povo não existem derrotas definitivas e nisto consiste o valor da esperança, que se soma com o da auto-confiança: superar o complexo de inferioridade que deprime o homem do campo.

No campo dos valores que o militante deve cultivar estão a alegria que vem da luta e a ternura, "que não significa perdoar o inimigo e deixá-lo ir para que se reabilite e volte mais preparado para nos atacar, porém, jamais desqualificá-lo enquanto ser humano".

Todos esses valores são coroados pela utopia – um viver "como se estivéssemos sempre nos preparando para um grande encontro".

1. A liturgia

Toda mística expressa-se numa liturgia, ou seja, numa linguagem de símbolos que une a palavra ao gesto. Cada liturgia é uma estética que traduz a visão transfigurada do mundo, "resgate de um drama que conhecerá um fim bom".

A liturgia do MST é bastante diversificada e muito bela, na singeleza das formas que desvelam a presença da cultura do povo rural. Essa cultura expressa a luta de uma população desde sempre oprimida por um quotidiano vivido no limite da sobrevivência física; humilhado pela prepotência da classe social que a explora; aviltado por um trabalho que se transformou em jugo. O fantástico é que, apesar dessa condição de vida, o camponês brasileiro tenha sido capaz de produzir beleza, solidariedade, ternura, alegria.

Passemos os olhos nos elementos dessa liturgia.

1.1. Os presentes

Ninguém visita, fala ou presta alguma ajuda ao MST sem receber um presente: um boné, uma camiseta, uma bandeirinha, um livro, um CD, uma flor. Se homem, o presente será entregue por uma mulher, se mulher, por um militante homem. Uma saudação, um abraço, palmas. Simples, singelo, tocante. Se ainda se precisasse de algo para vincular a mística do MST às raízes mais profundas da nossa nacionalidade, bastaria lembrar que presentear o visitante é costume rural cujas origens encontram-se no forte componente indígena da nossa população.

1.2. A bandeira do MST

Um homem e uma mulher que simbolizam a igualdade entre os sexos. Nos assentamentos do MST as mulheres não são obrigadas a cumprir o papel subalterno que a cultura machista do país lhes impõe. O homem empunha uma foice para lembrar o compromisso com a produção. Os dois estão enquadrados por mapa do Brasil, a fim de afirmar o compromisso com a construção da Nação.

1.3. A bandeira do Brasil

Não há reunião, grande ou pequena, em que a bandeira brasileira não penda de algum lugar saliente. O curioso é que a bandeira brasileira é um símbolo do poder da elite que proclamou a República, no século XIX. Como o símbolo do opressor pode pontificar em uma assembléia de militantes socialistas? A explicação é simples: no decurso da história, um povo despolitizado apropriou-se do símbolo da elite, sem perceber seu significado e atribuindo-lhe outro: o da Nação que querem construir. Não foi assim que aconteceu com o símbolo romano da morte execrável, transformado pelos cristãos no símbolo de uma vida gloriosa?

1.4. A celebração

Reuniões, pequenas, grandes ou enormes, começam sempre com uma celebração. Ela será rápida nas reuniões pequenas, demorada e complexa nas grandes. Os elementos dessas celebrações são sempre os mesmos: terra, água, fogo, espigas de milho, cartilha de estudante, enxada, flor. As palavras são poucas. Poéticas e convincentes, resgatam os poetas populares e os grandes poetas brasileiros como Haroldo de Campos, Drumond de Andrade, Pedro Tierra. O gestual é contido e significativo: o canto, o punho cerrado, indicando a indignação, a disposição de luta, a esperança. Canto puro dos trovadores populares, surgidos dos grotões do país, como Zé Pinto, Zé Cláudio, Marquinho, que se junta ao canto da mais fina flor dos artistas brasileiros: Chico Buarque, Tom Jobim, Caymmi, Milton Nacimento.

1.5. Os ícones

As celebrações são sempre enquadradas pelos grandes retratos de lutadores do povo. Aqui explode o sincretismo da mística dos sem-terra: Marighela, o líder comunista guerrilheiro, figura ao lado de Paulo Freire, o revolucionário pedagogo católico; Rosa de Luxemburgo junto com Madre Cristina, freira católica; Florestan Fernandes, sofisticado intelectual marxista, vizinho ao Padre Josimo, cura do sertão, assassinado pelos jagunços do latifúndio; Carlos Marx ao lado de Jesus Cristo.

Quem se espanta com a mescla, na verdade, conhece muito pouco da mentalidade do povo brasileiro e nem parece também estar ao tanto das verdadeiras dimensões do humanismo socialista.

Toda liturgia é uma pedagogia. As celebrações, que antecedem as reuniões de trabalho, trazem à memória dos participantes os valores da sua mística: a solidariedade, o internacionalismo, a disposição de luta. Essa simbologia identifica o grupo e o vincula ao passado, mas, ao mesmo tempo o projeta no futuro, com a imagem de um Brasil justo, onde corram "o leite e o mel".

2. O MST e as esquerdas

O peso da mística na conduta do MST leva-o a atritar-se permanentemente com a elite dominante. Ela não suporta a independência do movimento. Mas até na esquerda o MST cria atrito.

Tendo de atuar em uma conjuntura extremamente adversa, os partidos de esquerda desenvolveram, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, estratégias defensivas que deixam de lado as propostas de transformação radical da sociedade, para enfatizar os "pequenos avanços" (uma velha discussão, como sabemos). Nesse contexto minimalista, a ação do MST, propondo a revolução socialista, igualitária, libertária, ética, aparece como uma crítica e como um desvio voluntarista primário.

Essa esquerda, que se rendeu ao impossibilismo em nome da modernidade, não pode compreender que, em uma sociedade em que a alienação tornou-se um elemento orgânico da consciência coletiva, se fale abertamente em revolução socialista. Daí a crítica fácil e surrada de que se trata de um milenarismo primitivo, desconectado do mundo real, incapaz de liderar um processo efetivo de transformação gradual do capitalismo em um regime humano. O equívoco consiste em não ver que, no milenarismo do MST, o componente passado constitui o resgate da cultura camponesa, matriz da nacionalidade e que, ao lado dessa referência ao passado, essa mística aponta fortemente para o futuro socialista.

É um grave erro subestimar a importância do mundo rural nos processos revolucionários modernos. Todos eles, como vimos, só conseguiram vencer a repressão do sistema porque os guerrilheiros estavam no campo, "como peixe na água". O que são as FARCs, o EZLN e o MST senão demonstrações patentes de que o milenarismo agrário é altamente significativo em sociedades basicamente agrárias? E não tenhamos dúvida: a despeito da urbanização desarrazoada e da industrialização postiça, a sociedade brasileira permanece fundamentalmente agrária e não se libertou, por mais que procure esconder, do seu passado colonial e escravocrata. Sem exorcizar esse passado, o Brasil jamais será uma Nação independente e menos ainda uma sociedade socialista.

Duas frases de Caio Prado Jr., um dos nossos mais importantes pensadores, resumem o problema. A primeira: "... no campo brasileiro é que se encontram as contradições fundamentais e de maior potencialidade revolucionária na fase atual do processo histórico-social que o país atravessa." A segunda: "Não é preciso insistir muito no fato que sobre a base de miséria física e moral que predomina no campo brasileiro, e se reflete tão intensamente, como não podia deixar de ser, nos centros urbanos, não é possível construir uma nação moderna e de elevados padrões econômicos e sociais".(4)

Não perceberam os intelectuais que se querem modernos, (alguns deles trânsfugas do próprio MST) que o socialismo no Brasil está umbilicalmente ligado ao processo de construção da Nação brasileira e que a energia desse processo provém da enorme contradição de uma sociedade que deu liberdade aos escravos, mas negou-lhes o acesso à terra, com o propósito evidente de não alterar a condição de sobre-exploração da força de trabalho rural.

O economista brasileiro Celso Furtado viu o que muitos de seus colegas deixaram de ver: a importância estratégica do MST para a construção nacional; e por isso não teve dúvidas em afirmar enfaticamente, contrariando até seu estilo sempre contido, que esse movimento é o mais importante do século XX no Brasil e se liga organicamente ao mais importante movimento do século XIX: a abolição da escravatura.(5) O MST é a continuação daquele movimento, mas com um significado histórico diverso. Enquanto a campanha abolicionista, depois de quase vitoriosa, foi abortada por um golpe palaciano que a diluiu em uma conciliação das facções das classes dominantes, transformando a libertação dos escravos em um "negócio de brancos para brancos", o MST impede que a atual elite aborte a reforma agrária. Seu lema "reforma agrária, uma luta de todos" é um chamado geral, que não se esgota no campo, mas na construção nacional. O motor dessa luta é a mística libertadora.

1 Político e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Ele é formado em Direito pela Universidade de São Paulo e tem pós-graduação pela Cornell University. Consultor da FAO-ONU. Cassado em 1964, exilou-se no Chile. Sua carreira política, ao retornar ao Brasil, inclui o mandato de deputado federal em 1985, deputado constituinte em 1986-90 e a candidatura ao governo de São Paulo. Atualmente dirige o Correio da Cidadania, semanário que comenta os eventos divulgados pela grande media.

2 Boff, Leonardo, "Alimentar a nossa mística", mimeo. 2001.

3 Bogo, Ademar, Valores que deve cultivar um lutador do povo, in Valores de uma prática militante, Consulta Popular, Cartilha 09. 2000.

4 Caio Prado Jr. A Revolução Brasileira. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

5 Furtado, Celso. Brasil: A construção interrompida. Paz e Terra. 1992..

Data:

novembro de 2002

Recurso ID:

MSTICAOF657

		À Universidade da página bem-vinda de Nottingham

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Última atualização: 07 / 05 / 2016

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