Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, foi criado formalmente
no Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra, que aconteceu de 21
a 24 de janeiro de 1984, em Cascavel, no estado do Paraná, no sul do Brasil.
Hoje o MST está organizado em 22 estados, e segue com os mesmos objetivos
definidos neste Encontro de 1984, e ratificados no I Congresso Nacional realizado
em Curitiba, Paraná, no ano de 1985, também no Paraná: lutar
pela terra, pela Reforma Agrária e pela construção de uma
sociedade mais justa, sem explorados nem exploradores. Desde a sua criação,
o MST incluiu em sua agenda política a luta por escola e a discussão
sobre que escola deveria fazer parte da vida da família Sem-Terra.
Este texto trata das lições de pedagogia que podemos apreender
da trajetória histórica do MST. Mas antes de enunciar algumas
delas é importante situar o contexto da reflexão que permite pensar
em um movimento social de trabalhadores do campo como um lugar onde se produzem
lições sobre como desenvolver processos de formação
humana (2).
O MST entrou em seu 17º ano de existência refletindo mais profundamente
sobre duas de suas grandes tarefas, definidas ao longo de sua história:
ajudar a acabar com o pecado mortal do latifúndio, desconcentrando
e tornando socialmente produtivas as terras deste país imenso, o Brasil;
ajudar a humanizar as pessoas, formando seres humanos com dignidade, identidade
e projeto de futuro. Esta segunda tarefa, talvez a que melhor o MST vem cumprindo
desde que começou a ser gestado, é a que nos remete a pensar mais
diretamente na dimensão educativa do Movimento.
A obra educativa do MST tem três dimensões principais: (1ª)
o resgate da dignidade a milhares de famílias que voltam a ter raiz e
projeto. Os pobres de tudo aos poucos vão se tornando cidadãos:
sujeitos de direitos, sujeitos que trabalham, estudam, produzem e participam
de suas comunidades, afirmando em seus desafios cotidianos uma nova agenda de
discussões para o país; (2ª) a construção de
uma identidade coletiva, que vai além de cada pessoa, família,
assentamento. A identidade de Sem Terra, assim com letras maiúsculas
e sem hífen, como um nome próprio que identifica não mais
sujeitos de uma condição de falta não ter terra
(sem-terra) mas sim sujeitos de uma escolha: a de lutar por mais justiça
social e dignidade para todos, e que coloca cada Sem Terra, através de
sua participação no MST, em um movimento bem maior do que ele;
um movimento que tem a ver com o próprio reencontro da humanidade consigo
mesma; (3ª) a construção de um projeto educativo das diferentes
gerações da família Sem Terra, que combina escolarização
com preocupações mais amplas de formação humana
e de capacitação de militantes.
Olhando para a história do MST nesta perspectiva, nos encontramos com
algumas lições de pedagogia, ou de como os sujeitos de uma luta
social e de uma coletividade em movimento se ocupam e se preocupam com educação.
Estas lições podem nos ajudar a refletir sobre cada uma das nossas
práticas de educação, incluindo aquelas que desenvolvemos
nas escolas.
Refletindo sobre estas lições passamos a compreender algo ainda
mais profundo: o MST tem uma pedagogia, quer dizer, tem uma práxis (prática
e teoria combinadas) de como se educam as pessoas, de como se faz a formação
humana. A Pedagogia do Movimento Sem Terra é o jeito através do
qual o Movimento vem, historicamente, formando o sujeito social de nome Sem
Terra, e educando no dia-a-dia as pessoas que dele fazem parte. E o princípio
educativo principal desta pedagogia é o próprio movimento, movimento
que junta diversas pedagogias, e de modo especial junta a pedagogia da luta
social com a pedagogia da terra e a pedagogia da história, cada uma ajudando
a produzir traços em nossa identidade, mística, projeto. Sem Terra
é nome de lutador do povo que tem raízes na terra, terra de conquista,
de cultivo, de afeto, e no movimento da história.
Esta é a discussão principal que estamos fazendo hoje no MST
com nossos educadores e nossas educadoras: como fazer da Pedagogia do Movimento
uma referência de nossa prática e de nossa reflexão. Ser
educador do MST é conseguir apreender a dimensão educativa das
ações do Movimento, fazendo delas um espelho para suas práticas
de educação. Trata-se de uma referência de olhar que ajuda
a enxergar os limites e desafios destas práticas. Um espelho que também
educa o nosso olhar para ver mais do que o MST, mais do que os Sem Terra. A
Pedagogia do Movimento se produz no diálogo com outros educadores, outros
educandos e outros movimentos pedagógicos. Foi exatamente na interlocução
com pessoas e obras preocupadas com a formação humana que conseguimos
refletir sobre o MST como sujeito pedagógico. Desde esta nova síntese
continuamos nosso diálogo com teorias e práticas da formação
humana, e uma reflexão específica sobre o ambiente educativo de
nossas escolas.
Deste diálogo entre as práticas do Movimento e as reflexões
sobre formação humana construídas ao longo da história
da humanidade, um primeiro produto diz respeito à própria concepção
de educação. Quando tratamos de práticas de humanização
dos trabalhadores do campo como uma obra educativa, estamos na verdade recuperando
um vínculo essencial para o trabalho em educação: educar
é humanizar, é cultivar os aprendizados de ser humano.
O MST trabalha o tempo todo no limite entre humanização e desumanização;
sua luta é de vida ou morte para milhares de pessoas, que fazem da sua
participação neste Movimento uma ferramenta de reaprender a ser
humano. Este é o dia-a-dia da educação dos Sem Terra em
cada ocupação, em cada marcha, em cada acampamento, assentamento...
E é este mesmo dia-a-dia que mostra que esta é uma tarefa possível
e necessária; e que se é possível resgatar uma humanidade
quase perdida, e ajudar pessoas adultas ou já idosas neste reaprender
a ser humano, tanto mais possível e necessário é ajudar
nesta aprendizagem desde a infância.
A partir desta concepção de educação, há
lições de pedagogia que temos conseguido extrair neste contraponto
reflexivo entre o cotidiano do MST, as diversas teorias e práticas sobre
formação humana, e as preocupações de como fazer
a educação dos Sem Terra. São estas lições
que nos ajudam a pensar e a repensar também o currículo e o ambiente
educativo de nossas escolas.
1. As pessoas são o maior valor produzido e cultivado pelo MST
O Movimento é do jeito que coletivamente as pessoas vêm produzindo
a identidade Sem Terra, e fazendo a luta pela Reforma Agrária que enraíza
e fortalece esta identidade. Em momentos de conflito social mais acirrado, como
o que vivemos hoje, isto fica ainda mais visível: é das pessoas,
de cada uma delas, que depende a resistência, a firmeza nos propósitos,
a conduta que fica como imagem perante a sociedade; a continuidade diante dos
embates mais fortes, a identidade. O MST conseguiu chegar aos 17 anos porque
aprendeu a valorizar cada pessoa que integra sua organização,
e definiu a formação humana como uma de suas grandes prioridades.
Como educadores precisamos ter claro o que está em questão cada
vez que nos encontramos com nossos educandos: estamos diante de seres humanos,
que merecem nosso respeito e dedicação, como seres humanos, e
como sujeitos de uma organização que luta por dignidade. Nosso
trabalho em uma escola onde estudam os Sem Terrinha, por exemplo, precisa ser
pensado na perspectiva de uma obra educativa grandiosa, o que nos responsabiliza,
fascina e compromete.
Precisamos refletir sempre sobre algumas perguntas básicas: que ser
humano estamos ajudando a formar através de nossa prática? Há
coerência com a humanidade que a luta do MST vem produzindo e projetando
ao longo de sua história? E nossos educandos: que ser humano enxergam
quando olham para si mesmos e para seus companheiros do assentamento, do acampamento?
Nossas práticas de educação têm ajudado para que
se valorizem como pessoas, e assumam a identidade coletiva que ajudam a produzir?
2. As pessoas se educam aprendendo a ser
Uma das coisas que costuma chamar a atenção nas ações
do MST é o brio das pessoas que dele participam. Este brio, ou sentimento
de dignidade, se produz à medida que estas pessoas aprendem a ser Sem
Terra, e a ter orgulho deste nome. E ao assumir esta identidade social, coletiva:
somos Sem Terra, somos do MST, as pessoas aos poucos vão descobrindo
também outras dimensões de sua identidade pessoal e coletiva:
sou mulher, sou negra, sou camponês, sou jovem, sou educadora ... São
novos sujeitos que se formam e que passam a exigir seu lugar no mundo, na história;
sabem que podem e devem lutar pelo direito de ser humano, onde estiverem, com
quem ou contra quem estiverem.
Isto nos remete a pensar que este é um aprendizado humano essencial:
olhar no espelho do que somos e queremos ser; assumir identidades pessoais e
coletivas, ter orgulho delas, ao mesmo tempo em que se desafiar no movimento
de sua permanente construção. Educar é ajudar a construir
e a fortalecer identidades; desenhar rostos, formar sujeitos. E isto tem a ver
com valores, modo de vida, memória, cultura.
3. As pessoas se educam nas ações que realizam e nas obras
que produzem
O MST forma os Sem Terra colocando-os em movimento, o que quer dizer, em ação
permanente; ações da dinâmica de uma luta social: ocupações,
acampamentos, marchas, manifestações de solidariedade, construção
de uma nova forma de vida nos assentamentos, conquista de escolas, atividades
de formação... É pela ação que vão
aprendendo que nada é impossível de mudar, nem mesmo as pessoas,
seu jeito, sua postura, seu modo de vida, seus valores.
As pessoas se educam nas ações porque é o movimento das
ações que vai conformando o jeito de ser humano. As ações
produzem e são produzidas através de relações sociais:
ou seja, elas põem em movimento um outro elemento pedagógico fundamental
que é o convívio entre as pessoas, a interação que
se realiza entre elas, mediada pelas ferramentas herdadas de quem já
produziu outras ações antes (cultura); nestas relações
as pessoas se expõem como são, e ao mesmo tempo vão construindo
e revisando suas identidades, seu jeito de ser.
Não estamos falando de qualquer ação, ou do agir pelo
agir, sem intencionalidade alguma. Estamos falando de ações que
produzem obras (materiais ou não) que se tornam espelho onde as pessoas
podem olhar para o que são, ou ainda querem ser; e estamos falando principalmente
do trabalho e da produção material de nossa existência.
Não há verdadeira educação sem ações,
sem trabalho, e sem obras coletivas. E, nos lembram as crianças, também
não há educação sem jogos e brincadeiras, que também
podem ser constituídas como ações coletivas produzindo
obras...
4. As pessoas se educam produzindo e reproduzindo cultura
As ações dos Sem Terra são carregadas de significados
culturais que aprendem a produzir e a expressar. Numa ocupação,
numa marcha ou na organização de um assentamento, não aparece
apenas o que estas famílias de trabalhadores são hoje, ou neste
momento. Cada ação traz junto o jeito de ser humano que estas
pessoas carregam; o peso formador das circunstâncias objetivas de toda
sua existência anterior e o tipo de educação que receberam
ou viveram. Ao mesmo tempo, sua ação coletiva também costuma
ser a negação de algumas tradições que marcaram
suas vidas até aqui, e a projeção de valores que aprendem
ou reaprendem no processo pedagógico do Movimento. Os gestos, os símbolos,
a arte, o jeito de lutar dos Sem Terra encarnam um movimento cultural que nem
começa nem termina no momento da ação. Cada sem-terra que
entra no MST entra também num mundo já produzido de símbolos,
gestos, exemplos humanos, valores, que a cada ação ele vai aprendendo
a significar e ressignificar.
Um dos grandes desafios pedagógicos do MST com sua base social tem sido
justamente ajudar as pessoas a fazer uma nova síntese cultural, que junte
seu passado, presente e futuro numa nova e enraizada identidade coletiva e pessoal.
Viver como se luta, lutar como se vive... Esta é uma coerência
que tem sido vista como necessária aos objetivos de transformação
social do Movimento; também em seus conflitos e desafios permanentes.
Memória, mística, discussão de valores, crítica
e autocrítica, estudo da história, são algumas ferramentas
culturais que o Movimento vem utilizando nesta construção.
Podemos refletir então que educar é também partilhar significados
e ferramentas de cultura (expressão de Jerome Bruner apud Arroyo, 2000);
é ajudar as pessoas no aprendizado de significar ou ressignificar suas
ações, de maneira a transformá-las em valores, comportamentos,
convicções, costumes, gestos, símbolos, arte, ou seja,
em um modo de vida escolhido e refletido pela coletividade de que fazem parte.
Isto quer dizer, entre outras coisas, que educar as pessoas é ajudar
a cultivar sua memória, é conhecer e reconhecer seus símbolos,
gestos, palavras; é situá-las num universo cultural e histórico
mais amplo, é trabalhar com diferentes linguagens, é organizar
diferentes momentos e jeitos para que as pessoas reflitam sobre suas práticas,
suas raízes, seu projeto, sua vida...
5. As pessoas se educam vivenciando valores
Valores são uma dimensão fundamental da cultura; são princípios
de vida, aquilo pelo qual consideramos que vale viver. São valores que
movem nossas práticas, nossa vida, nosso ser humano. São valores
que produzem nas pessoas a necessidade de viver pela causa da liberdade e da
justiça. São valores que movem o empenho dos Sem Terra em fazer
dos assentamentos comunidades de utopia, coerentes com a luta que os conquistou.
O MST tem se preocupado muito com o cultivo de valores. Porque sabe que são
os valores, traduzidos em cultura, o que deixará como herança
a seus descendentes e às novas gerações de lutadores do
povo. E valores somente existem através das pessoas, suas vivências,
postura, convicções. E eles não nascem com cada um; são
aprendidos, cultivados através de processos coletivos de formação,
de educação.
Para o MST esta não tem sido uma batalha fácil: cultivar e recuperar
valores humanos como a solidariedade, a lealdade, o espírito de sacrifício
pelo bem-estar do coletivo, o companheirismo, a sobriedade, a disciplina, a
indignação diante das injustiças, a valorização
da própria identidade Sem Terra, a humildade..., numa sociedade que dia
a dia se degenera nos contravalores do individualismo, do consumismo, da apatia
social, do descompromisso com a vida, da desqualificação de quem
participa de lutas sociais... Mas é somente assumindo a tarefa de educar
e reeducar as pessoas em seus valores que o MST pode ajudar a realizar o que
projeta em sua história.
6. As pessoas se educam aprendendo a conhecer para resolver
Nas ações de uma luta social também se aprendem e se produzem
conhecimentos, e eles são uma dimensão muito importante da estratégia
de humanização das pessoas. Mas uma das lições de
pedagogia que temos extraído do dia-a-dia do Movimento é que o
processo de produção do conhecimento que efetivamente ajuda na
formação das pessoas é aquele que se vincula com as pequenas
e grandes questões de sua vida. Quando um Sem Terra precisa conhecer
cálculos de área para saber medir a terra onde será feita
a agrovila de seu assentamento, ou quando precisa estudar geografia para melhor
escolher o lugar da ocupação, certamente este conhecimento terá
mais densidade humana e social para ele; quando um Sem Terrinha aprende a medir
os materiais de que precisa para começar a construir seu parque de brinquedos,
ou aprende a escrever cartas para pessoas de quem gosta, da mesma forma. A expressão
"conhecer é resolver", do educador cubano José Martí,
nos remete a uma questão até mais radical: ela nos sugere que
não há conhecimento verdadeiro fora das situações
concretas, da solução de problemas da vida real. E
parece mesmo ser assim, especialmente quando esta questão se coloca no
contexto de processos pedagógicos.
Educar é socializar conhecimentos e também ferramentas de como
se produz conhecimentos que afetam a vida das pessoas, em suas diversas dimensões,
de identidade e de universalidade. Conhecer para resolver significa entender
o conhecimento como compreensão da realidade para transformá-la;
compreensão da condição humana para torná-la mais
plena. Uma lição bem antiga, que a Pedagogia do Movimento apenas
recupera.
7. As pessoas se educam aprendendo do passado para projetar o futuro
Foi assim que o Movimento se fez como é: aprendendo dos lutadores que
vieram antes, cultivando a memória de sua própria caminhada. A
história se faz assim: projetando o futuro a partir das lições
do passado cultivadas no presente. A terra guarda a raiz, diz uma das canções
do MST. A educação também deve guardar raiz, ajudando no
cultivo da memória do povo e na formação da consciência
histórica.
Educadores e educadoras têm uma tarefa bem específica sobre isso:
seus encontros com os educandos e as educandas podem ser tempo privilegiado
para o aprendizado do cultivo da memória coletiva, e do estudo da história
mais ampla. Saber que isso pode fazer diferença para que não se
apague a memória das dívidas com o povo que não foram pagas,
das feridas que não foram cicatrizadas...
É preciso educar cada família Sem Terra para que não se
esqueça também de suas raízes camponesas, de sua cultura,
e de como estas raízes participam da formação do povo brasileiro.
Que todos os Sem Terra aprendam como chegaram à condição
de trabalhador rural sem-terra, e de como possuem muitos outros irmãos
no mundo inteiro em condição semelhante, também fazendo
a luta pela terra e pela Reforma Agrária como nós. E como educadores
também precisamos aprender desta memória e de seu cultivo. Não
para ficarmos presos ao passado, mas ao contrário, para colocá-lo
em movimento e projetarmos o futuro que é melhor para todos.
8. As pessoas se educam em coletividades
O MST é uma coletividade. E nela os Sem Terra aprendem que o coletivo
é o grande sujeito da luta pela terra e também o seu grande educador.
Ninguém conquista sua terra sozinho; as ocupações, os acampamentos,
os assentamentos, são obras coletivas. A força de cada pessoa
está em sua raiz, que é a sua participação numa
coletividade com memória e projeto de futuro. É fazendo parte
do coletivo e de suas obras que as pessoas se educam; não sozinhas, mas
em relação umas com as outras, o que potencializa o seu próprio
ser pessoa, singular, único.
As pessoas não aprendem a ser humanas sozinhas; sem os laços
de sua participação em coletivos elas não conseguem avançar
na sua condição plenamente humana. Pessoas desenraizadas são
pessoas desumanizadas, que não se reconhecem em nenhum passado e nem
têm projeto de futuro. Educar é ajudar a enraizar as pessoas em
coletividades fortes; é potencializar o convívio social, humano,
na construção de identidades, de valores, de conhecimentos, de
sentimentos. Um ambiente educativo é fundamentalmente uma coletividade
educadora, acionada ou planejada pelos educadores de ofício, mas compartilhada
por todos os seus membros. Numa coletividade verdadeira, todos são, em
seu tempo, educadores e educandos, porque todos fazem parte do processo de aprender
e reaprender a ser humano.
9. O educador educa pela sua conduta
Muito mais do que pelas suas palavras. A força do MST não está
nos seus discursos, mas sim nas ações e na postura dos Sem Terra
que as realizam. São as práticas e a conduta do coletivo que educam
as pessoas que fazem parte do Movimento ou com ele convivem.
É por isto que no MST temos como referência de educadores pessoas
como Paulo Freire e Che Guevara. Eles não foram educadores apenas pelo
que disseram ou escreveram; mas pelo testemunho de coerência entre o que
pensaram, disseram e efetivamente fizeram e foram, como pessoas e como militantes
das causas do povo.
Ser educador é, pois, um modo de ser. Um jeito de estar com o povo que
seja mensagem viva dos valores, das convicções, dos sentimentos,
da consciência que nos move e que dizemos defender em nossa organização.
É ter um compromisso integral, o que não é fácil.
Somente um coletivo pode nos ajudar no processo de crítica e autocrítica,
nas chamadas e nos afetos que nos mostram quando estamos vacilando, e ao mesmo
tempo nos acolhem para retomar o caminho.
10. É necessário conceber a escola como uma oficina de formação
humana
Sujeitos não se formam somente na escola. Há outras vivências
que produzem aprendizados até mais fortes. A Pedagogia do Movimento não
cabe na escola, porque o Movimento não cabe na escola, e porque a formação
humana também não cabe nela. Mas a escola cabe no Movimento e
em sua pedagogia; cabe tanto que historicamente o MST vem lutando tenazmente
para que todos os Sem Terra tenham acesso a ela. A escola que cabe na Pedagogia
do Movimento é aquela que reassume sua tarefa de origem: participar do
processo de formação humana.
Pensar na escola como uma oficina de formação humana quer dizer
pensá-la como um lugar onde o processo educativo ou o processo de desenvolvimento
humano acontece de modo intencionalmente planejado, conduzido e refletido para
isso; processo que se orienta por um projeto de sociedade e de ser humano, e
se sustenta pela presença de pessoas com saberes próprios do ofício
de educar, pela cooperação sincera entre todas as pessoas que
ali estão para aprender e ensinar, e pelo vínculo permanente com
outras práticas sociais que começaram e continuam esta tarefa.
A expressão também nos ajuda a repensar a lógica pedagógica,
ou o método pedagógico da escola. Estamos dizendo que escola não
é apenas lugar de ensino, e que método de educação
não é igual a método de ensino. É preciso planejar
estratégias pedagógicas diversas, em vista dos diferentes aprendizados
que compõem o complexo processo de formação humana.
Numa escola concebida como oficina de formação humana educadores
são arquitetos, organizadores e animadores do ambiente educativo. Isto
exige muita sensibilidade e domínio das artes da pedagogia, para ir fazendo
as escolhas a partir de uma clara percepção de como está
se desenvolvendo o processo educativo em cada educando e na coletividade como
um todo; perceber as contradições e não se apavorar com
elas: trabalhá-las pedagogicamente; dar-se conta de quais dimensões
precisam ser enfatizadas num momento ou noutro; que tipo de ações
precisam ser provocadas e com que conteúdos, quais as relações
que devem ser trabalhadas e em que momento...
E um aprendizado muito importante: é preciso ser humilde para se colocar
sempre na condição de aprendiz do processo. Como aprendizes que
somos todos nós, desta complexa arte de construção da humanidade,
de que o MST também faz parte; ainda que apenas uma pequena parte.
Porto Alegre, maio de 2001
Referências bibliográficas
Arroyo, M. G. Ofício de Mestre, Petrópolis: Vozes, 2000.
Caldart, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra, Petrópolis: Vozes,
2000.
Caldart, R. S. A pedagogia da luta pela terra: o movimento social como princípio
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de Trabalho Movimentos Sociais e Educação, 2000.
Freire, P. Pedagogia da indignação, São Paulo: Editora
da UNESP, 2000.
Martí, J. Ideario Pedagógico, Havana: Imprenta Nacional de Cuba,
1961.
Stedile, J. P. e Fernandes, B. M. Brava gente: a trajetória do MST e
a luta pela terra no Brasil, São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 1999.
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